domingo, 21 de junho de 2015

Figura de linguagem

Para começar a contar a história que a gente vai acompanhar nas linhas a seguir, é melhor nos posicionarmos atrás dessa árvore aqui. Ela fica exatamente de frente uns 100 metros de onde essa história vai se passar. É só seguir o olhar em linha reta por uns 30, depois em curva por mais uns 50 e voltar pro mesmo caminho nos pontos finais. Estar atrás dessa árvore tem seus motivos, se você ainda não percebeu. Esse pé-de-quê tem sombra. Isso vai nos ajudar muito porque a história é longa. História que se conta muito rápido falta alguma coisa. Parece como aquela visita inesperada. Chega e sai sem avisar. Quando a gente está ficando íntimo, quentinho, eis que batem as horas no relógio e até mais, tenho de ir, estava de passagem, nos vemos em breve. É também como um furacão, para usar a figura de linguagem. É também a própria figura de linguagem, que a gente usa para explicar algo para que se entenda melhor, rapidamente, uma história. Mas se a história for curta, ela mesma pode ser quase do tamanho do entendimento do que a figura de linguagem quer dizer. E é justamente por isso que histórias não podem ser tão curtas e que estamos debaixo dessa árvore, que tanta história nos tem para contar.

quinta-feira, 13 de junho de 2013


A reza não esbarrava. Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar. – “Miguilim, e você não contou a estória da Cuca Pingo-de-Ouro...” “ – Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos...” Como é que podia inventar a estória? Miguilim soluçava. – “Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...” “ – No céu, Dito? No céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. – “Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com mãe, é de você...” E o Dito não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: - “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá.

Miguilim doidava de não chorar mais e de correr por um socorro. Correu para o oratório e teve medo dos que ainda estavam rezando. Correu para o pátio, chorando no meio dos cachorros. Mãitina caminhava ao redor da casa, resmungando coisas na linguagem, ela também sentia pelo estado do Dito. – “Ele vai morrer, Mãitina?!” Ela pegou na mão de dele, levou Miguilim, ele mesmo queria andar mais depressa, entraram no acrescente, lá onde ela dormia estava escuro, mas nunca deixava de ter aquele foguinho de cinzas que ela assoprava. – “Faz um feitiço pra ele não morrer, Mãitina! Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe...” Mas aí, no vôo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. Escutou os que choravam e exclamavam, lá dentro de casa. Correu outra vez, nem soluçava mais, só sem querer dava aqueles suspiros fundos. Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - “Miguilim, o Ditinho morreu...”

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cientistas tentam explicar o choro do meu avô


Por que choramos? Em recente matéria publicada pelo The Guardian, alguns pesquisadores tentam explicar o fato de, por exemplo, meu avô ter se derretido em lágrimas quando Ronaldo Fenômeno ganhou o prêmio de melhor do mundo em 1996. Era verão e estávamos, eu e ele, na sala da casa de minha mãe em Marataízes, eu tinha 11 anos e a gente tinha acabado de dar uma volta para tomar um Guaraná. Eu, guri, fiquei surpreso quando reparei que dos olhos do meu avô saiam lágrimas quando anunciaram o nome do brasileiro. Fiquei espantado. “Como pode chorar por alguém tão distante?”, pensei. No livro “Why Only Humans Weep”(Por que só os Humanos Choram), que ilustra a reportagem, há algumas tentativas para explicar o motivo do choro do meu avô. Apresentam exemplos da evolução do estudo do choro: desde os macacos aquáticos que precisavam se adaptar à água salgada; a necessidade de se comunicar entre os pares em situação de perigo sem realizar ruídos que pudessem chamar atenção dos predadores; a lágrima como importância social; a impotência da infância, quando somos mais vulneráveis; e o fato de, apesar de quase todos os mamíferos chorarem, apenas os seres humanos manifestam essa reação na fase adulta. Taí meu avô que não deixa os cientistas mentirem. A matéria termina com uma constatação realmente esclarecedora. Os seres humanos preferem chorar na presença de outra pessoa. "Tears are less important when you are alone because there is no one to witness them" (“As lágrimas são menos importantes quando você está sozinho porque não há ninguém para testemunhá-las”), afirma o pesquisador Ad Vingerhoets. Não há vergonha no choro. Muito mais do que uma questão de parentesco, entendo perfeitamente o por quê sou neto de meu avô.

A CartaCapital traduziu a reportagem em uma recente edição.

domingo, 14 de abril de 2013

Essa vai e não volta


Dentro de um vagão, a explicação é simples: esse só vai, quem volta é outro. Linda e feliz, vestia azul na roupa e por cima dos olhos. A maquiagem já estava meio borrada por conta da chuva que pegou no caminho, tinha acabado de sair da festa de aniversário do menino de cinco anos que ela cuida. Joelma se destaca no meio da multidão. Queria ajuda. Nunca andou de metrô na vida. Sua história também, apesar de parecida como a de muitos outros. Mas é diferente quando se expõe assim, na sua frente, com você a ouvir tudo só para você. O sotaque denuncia a vinda: nordeste. O sotaque não denuncia a volta: não pretende retornar nunca mais para casa no interior da Paraíba. De lá fugiu de uma situação de quase escravidão. Trabalhava nas carvoarias e ganhava duzentos reais por mês. Passava fome facilmente e era endividada com o dono do sitio em que vivia a respirar o pó preto. Com o desejo de sua filha de estudar na cidade grande, juntou o dinheiro da passagem e, com mais trezentos reais, veio para o Rio de Janeiro sozinha. Achava que com esse dinheiro sobreviveria um tempo. Não deu para quase nada. Logo nos primeiros dias viu que a cidade crescia cada vez mais, cada vez mais. Saiu de uma situação de pobreza para viver outra no sudeste. Morou na rua por quase um ano. O que conseguia juntar dava para comer de vez em quando, sabendo que dois reais por semana eram sagrados para dançar forró na Feira de São Cristovão. Com medo de tudo o que poderia acontecer com quem, do nada, passou a dormir na rua, foi procurar ajuda. Conseguiu um emprego numa casa de uma assistente social que lhe pagava os mesmos duzentos reais, mas lhe dava comida melhor e uma cama quente. Certa de que só iria dar notícia à família quando conseguisse um emprego, mandou uma carta escrita por alguém que sabia escrever. Ela não. Depois de um tempo veio o marido que logo se foi também. Apaixonou-se por outra e ela acabou sozinha novamente, curando a solidão apenas com a vinda da filha. Pulando de emprego em emprego, há cinco anos no Rio, Joelma conseguiu crescer. Trabalha na casa de executivos de duas grandes empresas nacionais em um bairro distante 50 km ou duas horas da sua casa. É uma dos cinco empregadas da família: duas babás, cozinheira, arrumadeira e passadeira. É extremamente grata aos patrões. Com eles, já visitou três países: Holanda, México e Canadá. Recebe atualmente quase dois mil reais limpos, além de comer na casa dos patrões. Continua a ter poucos gastos. Envia mensalmente duzentos reais para um filho que ficou na Paraíba (“é uma fortuna para ele”), paga oitocentos na faculdade de administração da filha. O que sobra usa para dançar forró, coisas básicas da casa e também para comprar roupa e sapato. Reserva um dinheiro para continuar a construir a casa em que mora. Comprou um terreno em Belford Roxo e, com a ajuda dos vizinhos, ergueu sua morada. Movimentou o mundo para dar sonho aos filhos. Está resolvendo os seus agora. Já na quinta série, está aprendendo a ler e sorri com orgulho quando pergunto se consegue ler a placa do metrô: Flamengo. Queria descer na Central, local de chegada e saída de ônibus para inúmeros destinos. Um, certamente ela já descartou. Joelma não quer voltar para o nordeste. Sua casa agora é o Rio de Janeiro. Assim como esse trem, Joelma só vai. Não volta.

domingo, 7 de outubro de 2012

A primeira vista é para os cegos


“a distância inventa cidades, como muito bem sabemos. Por essa razão é que eu nunca me esqueço daquele aviso que alguém um dia deixou nesta varanda de curiosos: A primeira vista é para os cegos!”
 PIRES, José Cardoso. Lisboa, Livro de Bordo — Vozes, Olhares, Memorações

sábado, 22 de setembro de 2012

O pé de manga


Assim como a cidade de Corinto, que está no centro geográfico exato de Minas Gerais, e a cidade de Palmas, que está no centro geográfico exato do Brasil, aquele pé de manga estava no centro geográfico exato do quintal da minha casa. A exatidão era quase capilar. Para as crianças não fazia muito sentido chamar o pé de manga de mangueira. Mangueira já estava bem definido como o objeto que levava a água da torneira do pé da escada até qualquer lugar da nossa casa e que, às vezes, mamãe deixava a gente usar para limpar o quintal. Normalmente era com a vassoura que varríamos aquele quintal enorme na beira do rio. O pé de manga adquiriu muitas funções ali em casa, desde as mais óbvias, que eu me recuso a citar aqui, até as mais inapropriadas. Era ele quem dificultava entrar em uma das vagas da garagem. Ela ele que servia de abrigo para os morcegos mais sinistros do meu universo. Também era o responsável por sujar o chão cada vez que caia uma fruta. E como mamãe evitava deixar a gente limpar com água, ficava tudo mais difícil na hora de varrer. Para mim, o pé de manga era responsável por dois desafios pessoais. Meu irmão mais velho, arquiteto quando adulto, construiu três tablados de basquete. Não me lembro dele jogar em nenhum. Ele gostava era de projetar, assim como fez com os carrinhos de rolimã e também com o campo de golfe cujos buracos eram potes de margarina e os tacos um combinado de canos e vergalhões. Duas das cestas em extremidades do quintal. Uma no portão vazado da garagem e outra mais pra perto do rio Itapemirim. A terceira ficou no centro geográfico exato entre essas duas: o pé de manga. Era a mais alta, mais difícil para qualquer um dos quatro filhos e inúmeros vizinhos acertarem. Se na cesta perto do rio eu acertava e na do portão eu era capaz de enterrar a bola, na do pé de manga eu sequer lançava a bola naquele aro feito a partir de uma cesta de lixo. Se o desafio esportivo parecia inatingível, mais impossível ainda era conseguir entender porque no alto do pé de manga ainda permanecia uma corda azul como a abraçar um daqueles gordos galhos. Aquela corda azul e um pedaço de borracha minúsculo preso na sua ponta não saiam da minha imaginação. Possivelmente da única vez que questionei, me explicaram que aquela corda servira outrora para pendurar um balão de doces e brinquedos de um dos aniversários de um dos meus irmãos. Cresci imaginando como deve ter sido a festa e como teria sido o momento em que os presentes estouraram o balão e tudo se espalhou pelo chão, com os meninos em guerra por qualquer coisa que dali pudesse aparecer. Deve ter sido divertido. Não sei se já estava no mundo nesse dia, possivelmente no colo de minha mãe ou de minhas tias. Lembro que só brinquei disso uma vez na vida, no aniversário de um amigo meu. Era baixo. Foi fácil para o Gabriel estourar, fazendo eu ter certeza de que aquele do meu pé de manga era muito maior. Do tamanho dos sonhos que recheavam a minha cabeça ao olhar para o alto.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sem título

Ele a queria tanto que, mesmo sem saber que ela iria, foi lá só para encontrá-la.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O homem que vendia mapas

Tinha 23 anos e uma paixão inusitada: vender mapas. Naquele momento, passava em frente ao número 451 da Av. Jerônimo Monteiro, no Centro de Vitória, e ao olhar a fachada de um restaurante, lembrou. Seu mais recente amor, o vender mapas, tinha nascido durante suas férias em Coromandel, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Chegou ao mundo no exato dia em que a cidade comemorava com festa os cinco anos de inauguração da primeira agência da Caixa Econômica Federal, onde sua mãe trabalhava com atendimento ao público. Foi em Coromandel que conhecera os primeiros passos da vida, antes de se mudar para tantas cidades que nem mais cabiam em seus dedos. Tinha só 23 anos. Para ele, relembrar Coromandel passando por Vitória fazia sentido. Ali naquela movimentada avenida fechava-se um ciclo e, consequentemente, iniciara-se outro. Foi em Coromandel que a conhecera, leve, morena, longos cabelos negros, unhas ao natural e poucas pintas, mas o suficiente para que ele começasse uma viagem pelo seu corpo. Não era noite de São João quando se encontraram, nem existiam especialidades no ar. Era só uma possível união entre os dois, tão natural que todas as vezes que se viam parecia claramente que lhes sobraram os anos anteriores. Intenso nos poucos dias juntos pela pequena Coromandel, certa vez deitou-se ao lado dela e ficou a procurar sinais pelo corpo da mulher. Achou réplicas perfeitas de constelações em seu rosto e outros sinais que só ele, não ela, era capaz de identificar. Foi assim que começou sua paixão por mapas. Com uma caneta imaginária, se alimentava destes sinais, criando ruas, avenidas, becos e estradas por onde seus dedos caminhavam lentamente, sem pressa. Antes que o tempo desgastasse qualquer coisa entre os dois, ele e seus 23 e anos foram viajar durante um final de semana e não mais voltaram. A decisão era sábia, tinha que refazer pelas ruas e estradas do mundo os caminhos que ele a ouvira dizer e também os que criara ao passar sua mão lentamente pelo corpo dela naquelas poucas noites em Coromandel, quando ele mais se lembrava de uns versos de Vinícius de Moraes. “Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura / Essa intimidade perfeita com o silêncio / Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo / Essa mão que tateia antes de ter, esse medo / Resta essa imobilidade, essa economia de gestos / Essa inércia cada vez maior diante do Infinito / Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível / Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado / De pequenos absurdos, essa capacidade / De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil / E essa coragem para comprometer-se sem necessidade”. Hoje, passando por Vitória, semanas depois de ter iniciado essa longa jornada, ele sabe que não precisa dela nem ela dele para viver. Por isso, refaz com seus pés as ligações corpóreas de outrora, agora utilizando os mapas, com a esperança de encontrá-la um dia pelos caminhos que ela nem sabe que está fazendo ele seguir. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Perto de você, tudo me falta, tudo me preenche


Aqui nessa lonjura de tempo, eu entendi que fui para bem longe. Foram exatos dois dias e meio de viagem num ônibus da Itapemirim que eles esqueceram no meio do caminho. Não tinha água, não tinha banheiro, só muita gente. Atravessei o sudeste inteiro e hoje estou aqui em voltas perto do Pará. Desci do ônibus em que conhecia umas três, quatro ou cinco Marias, mais uma infinita quantidade de Joãos e Josés, todos com nomes diferentes, mas cujas histórias se parecem. Antônio Carlos, 35 anos, subiu no Itapemirim no interior de São Paulo. Carregava consigo uma mochila cheia de castanhas que ele não conseguiu vender. Ia tentar fazer isso pelo meio do caminho de volta para casa, após ficar poucos meses na cidade grande tentando toda a sorte de desventuras que por ele passasse. Seus planos deram errado. Não se apaixonou por ninguém, não conseguiu dinheiro, não teve onde morar. Havia em si apenas uma excessão. Largar tudo (ou nada que tinha) e voltar para casa, recomeçar do zero no local em que ele mais conhecia, a sua cidade natal. Gervásio Silva, 25 anos mais velho que Antônio Carlos, também voltava para casa. Nas mãos, pouca coisa. No bagageiro do Itapemirim amarelo ano 92, toda a sua vida. Quando o ônibus encostou na Rodoviária de Brasília, ele já estava lá parado há muito tempo, tentando cercar dos olhos alheios seus pertences. Caixas e mais caixas de papelão não me deixaram decifrar tudo o que ali havia. Apenas em uma, cujas cordas e fitas adesivas já haviam se deteriorado deu para perceber algo como uma manta. “Mas no norte eu imaginei que fizesse muito calor, porque levar cobertas?”. “É minha cama”, respondeu rispidamente esse João/José que por mim passou durante horas e cujo jeito cabreiro pouco pude descobrir. De Minas Gerais, vim sentado ao lado de Maria Ines Perpétua, cujas frases que saiam de sua boca, no alto dos seus, suponho, 72 anos, eram praticamente teses de ficção científica. Visivelmente perturbada com toda aquela condição, de ter que retornar para sua vida outrora indesejada, proferia sons desconexos todas as vezes em que acordava. Eu, totalmente distinto de daquelas 40 pessoas ali presas por horas num Itapemirim, sabia que não adiantava ter viajado para longe, ter ficado aquele feriado em casa, ter te descoberto por agora, ter escutado tanto discos, lido tantos livros, visto tantos filmes, nem ter comprado aquele dicionário Houaiss com seus 228.500 verbetes, 376.500 acepções, 415.500 sinônimos, 26.400 antônimos e 57.000 termos arcaicos. Ainda não encontrei a palavra exata que quero para te dizer.

domingo, 24 de outubro de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

O urso

O urso caminhava em direção à toca. Sabia que aqueles eram seus últimos passos durante o outono. Banquetes repletos de peixes e morsas fizeram parte desses dias tão fartos. Não faltava opção de trajetos, de longas caminhadas em direção ao encontro de outros ursos. No meio do caminho, sempre ficava à beira d’água esperando alguma foca respirar para poder atacar. Saciava sua fome assim, além de todos de sua família. Mas estava chegando o período do inverno. E no inverno ele sabia que iria dormir por quatro meses, no mais profundo encontro consigo mesmo.

sábado, 7 de agosto de 2010

Ida serena

O Hugo está indo embora. Muitos amigos estão indo embora. Muitos amigos já foram embora. Eu mesmo já fui embora. Duas vezes. Aos 16, deixei a cidade em que nasci. E depois saí desta segunda em direção a uma terceira. Meus amigos, nas duas ocasiões, também disseram O Vitor está indo embora. Lembro-me com exatidão, ele certamente não, do dia em conheci o Hugo. Mas o Hugo está indo embora. Muitos amigos estão indo embora. Inclusive alguns que ficam, mas que também estão indo embora.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Raduan

Muitas coincidências no dia de hoje. Enquanto eu indicava para um amigo um livro do Raduan Nassar, recebi uma lista de livros novos da Biblioteca Municipal e nela continha um do Raduan Nassar. Nesse meio tempo, recebi um inesperado e-mail com um texto do Raduan Nassar. É tempo de reler Raduan Nassar. Segue um trecho do texto recebido.

Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.
(Trecho de O ventre seco, do livro ""Menina a caminho", Companhia das Letras – São Paulo, 1997, pág. 61. )

Texto completo aqui
http://www.releituras.com/i_orlando_rnassar.asp

terça-feira, 20 de julho de 2010

Entre o ser e estar

- Sabe o que mais me incomoda ao estudar uma língua?
- Ahm.
- O fato de algumas, mesmo tão bonitas de serem faladas, não fazerem o básico.
- Qual seria esse básico?
- Diferenciar o verbo ser do estar.
- É verdade. A própria língua parece se esquecer de quem está usando a fala.
- Isso! Esquece a turbulência que é o ser humano.
- Por isso é inaceitável, como no francês, o verbo ser ter a mesma palavra para designar o estar.
- É! No inglês também. Pecam por aí. Como pode não diferenciar o estado do ser humano mais claramente!?
- Nunca deixa claro se a pessoa é ou está.
- Vai ver porque os seres humanos são tão enigmáticos, não?
- Pode ser que as próprias línguas não queiram revelar esses sentimentos e estados do homem tão claramente.
- É verdade! Está aí um caminho! Interessante isso! A própria palavra traz em si o mistério que é o ser humano.
- É...! E você é ou está?
- No português, prefiro estar, mesmo sendo. Nas outras, ser e estar.

domingo, 18 de julho de 2010

Agradecemos por isso

Faço 50 anos de casamento daqui um mês. Minha esposa, eu conheci na festa da inauguração de uma igreja em Blumenau. Odiava a igreja e tinha repulsa aos padres. Meu pai queria que eu fosse um. Sabe aquela família tradicionalíssima do sul do País que se reunia à mesa para tudo, com a mãe em silêncio e o pai a olhar pesado para a vida e filhos!? Não que eu fosse um problema lá em casa. Por sinal, sendo o filho mais velho, tinha muitas responsabilidades. Conheci minha esposa e nos demos alguns poucos beijos até que, por conta de um jogo de futebol, quebrei o nariz e tive de me internar no Rio de Janeiro. Aos 17 anos, e isso lá na década de 40, me vi sozinho no Rio, sem conhecer ninguém, mas com uma vontade incrível de descobrir a cidade e, assim, acabar por me conhecer. Mas me faltava algo. Pode parecer bobo, eu sei, mas faltava aquilo que chamamos de metade. Para mim não é metade, para mim é inteiro. Me faltava o inteiro. Me faltava inclusive. Blumenau estava longe? Não sei. Trocávamos cartas desesperadamente. E é muito engraçado, porque isso ajudou a encurtar os períodos de ausência um do outro. Dois anos após sem voltar a Blumenau, as lembranças físicas do rosto dela me tinham saído da cabeça. Já não me lembrava mais com exatidão os detalhes da boca nem os contornos do nariz. Não fiquei preocupado. Continuava a gostar dela. Foi nessa hora que eu percebi que não era a extrema beleza dela que me encantava. Era ela. Eu tinha me apaixonado pelo que descobria aos poucos e pelo que não sabia dela. E isso me fez chegar aos 50 anos de casamento com uma ingenuidade indescritível. Sim, eu sei. Concordo. Mas a gente nunca precisa saber a exatidão das coisas nem a certeza delas. A magia do oculto, a angústia da dúvida, me parece ser o motor em relação ao entender o que é a vida. Quanto mais a certeza paira sobre o ar, menores são os prazeres da descoberta. A sua dúvida em relação a que vinho escolher tem um pouco disso. Não se sabe ao certo nem qual o prato principal mesmo que você me apresente a receita. E isso já é uma vantagem. Porque mesmo que você me detalhe aqui todos os ingredientes, isso não passará de intenções. E elas serão modificadas já quando as palavras saírem da sua boca. Porque eu tenho uma idéia do que possa ser um manjericão, mas para você um tempero pode representar muito mais do que um gosto a mais numa comida já cheia de fazeres. Como disse, daqui um mês completarei 50 anos de casado. E você acha que eu previa isso? Você acha que eu consegui planejar a minha vida? Os encontros inesperados são as provas de que o mistério e a angústia criam sentido para estar aqui hoje, conversando com você. Ou você acha que eu esperava ter uma conversa tão franca com você um dia!? Sequer te conheço. A gente nunca mais irá se ver, concorda? Mas sinto que continuo de algum modo responsável ou presente na sua história que tanto se parece com a minha. Se eu tenho certeza do futuro da sua?! Não! E agradecemos por isso.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Em algum lugar

O inglês, pelo mundo
O italiano, pelo gesto
O espanhol, pelo drama
O francês, pela delicadeza
O alemão, pela força
O português, pela saudade

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Los siete pecados capitales

"El deseo por la comida tiene mucho que ver con la historia de cada uno (...) Que las personas se sienten a tu propia mesa, compartan el pan y la bebida, es una virtud relacionada con la fraternidad. Por eso la importancia de saber que muchos no comen, porque no hay nada más fraternal que compartir la comida con alguien. En un pasado no tan lejano, cuando alguien defraudaba a una persona, se solía decir: “pero cómo iba imagina que me hiciera esto… si me he sentado a su mesa, he comido con él”. Comiendo se genera un vínculo donde se tiende en ese sentido lo mismo que con una gran desgracia, por ejemplo una epidemia: es un motorizador de unidad entre las personas."


“Los siete pecados capitales”, según el filosofo argentino Fernando Savater. Clarín, 20 de agosto de 2005.

domingo, 11 de julho de 2010

Da distância

Hoje eu entendi o motivo dessas ruas serem tão difíceis de caminhar. É para, como você sempre diz, irmos andando sem pressa.

Girar, girar...

Ele achou cômico saber que, enquanto a calcinha dela estava pendurada no box do banheiro, ela fazia sexo ao som do álbum do Vinícius de Moraes que ele tinha dado a ela. No disco, a assinatura e os escritos com a letra dele ficavam a girar, girar, girar, girar...

sábado, 10 de julho de 2010

Ela passa...

Ela passa... com o olhar apressado de quem não sabe esperar. Ele fica... pensando em quanto tempo teve de esperar. Ela surpreende... com o toque rápido de quem não quer esperar. Ele acaricia... aproveitando o tempo que não insiste em esperar. Ela abraça... o corpo trêmulo que pretende esperar. Ele fecha... aquela boca tensa que não julga esperar. Ela vai... com as vontades apressadas de quem não se permite esperar. Ele fica... pensando em quanto tempo mais vai ter de esperar. Ela para... Ele...

Esbarre de correr

"Pensar na pessoa que se ama é como querer ficar à beira da água esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr" Guimarães Rosa